domingo, 1 de maio de 2011

Crônicas e minicontos I

"Sonhos", Dali.

Um café continental ou quase nada

Tratava-se quase de um segredo, mas já o revelo, parcialmente, nas primeiras linhas: quem fazia o café sempre era D. Emerenciana. Um dia... Desculpem, mas trata-se de uma narrativa e esse “um dia” precisa aparecer . Pois bem, um dia o café não se fez. Dito assim fica interessante: “o café não se fez”, como se ele se fizesse sozinho, reflexivamente. O primeiro a bradar, olhando para os lados, como a procurar um responsável, foi o Professor Clóvis, consumidor dos mais habituais, de várias vezes ao dia. “Ora, essa!! Agora não tem café?!” Logo chegaram outros que se juntaram solidariamente ao espanto que se instalou e aquele “agora” deixava margem a sugerir a existência de outras coisas que já não havia; era quase uma declaração de grandes carências “próprias” das reclamações de prestadores e de usuários de serviços públicos. Agora o colapso teria atingido até o cafezinho. Como se não houvesse mais degraus a descer naquela repartição.
Tínhamos, em menos de cinco minutos, cerca de meia dúzia de consumidores cheios de afazeres inadiáveis e vorazes mas preocupados com a importantíssima ausência do café nosso de cada dia. Pois ele sempre estava ali, quente, disposto em garrafas alaranjadas, azuladas e de outras até. Na garrafa alaranjada, o mais doce; na azulada, o mais forte. Todos os dias do ano, duas vezes por dia passado e servido quente. Às vezes, em dias de chuvas ou de temperaturas amenas de fins de maio e começo de junho, até mesmo chá estava à mesa. Aquela mesa baixa, simples, com um forrinho surrado, atingira a dignidade de um aparador vitoriano, em torno do qual a vida se fazia leve, nas conversas, nas brincadeiras e nos sorrisos ao sabor do café. Exceto naquele dia, em que este não se foi feito. Essa voz passiva, construção que inverte o agente, não interessava a ninguém, acho até que era do desconhecimento solene de todos.
Como ninguém possuía atributos intelectuais específicos para buscar na estrutura da situação as razões para a ausência do café, nem se dispunha a aventar a possibilidade de que, para estar ali o café precisava de que alguém, de preferência com traços humanos, o fizesse, as falas repetiam o mesmo motivo monótono de cantigas medievais: “não tem café, é o fim mesmo!!”; “Não tem café!!”; “Não tem café”... Os que chegavam depois iam logo adotando e repetindo a mesma nota “não tem café!!” alguns tons acima ou abaixo.
Até que alguém se dignou a revelar meia verdade: “D. Emerenciana não veio trabalhar hoje”. Alguns, apenas alguns, sabiam que a pessoa que fazia a limpeza das salas em que todos ali trabalhavam, e dos móveis que todos usavam diariamente, se chamava D. Emerenciana. O mais comum era ser referida como “a moça da faxina”, "a senhora da limpeza", de quem só se lembravam quando encontravam poeira sobre a mesa. Ninguém jamais perguntou se ela limpava sozinha todo o prédio ou se fazia esse serviço com a ajuda de oito companheiras. Ninguém, jamais. Pois D. Emerenciana, que tinha contrato precário com firma terceirizada de limpeza, e que cuidava da higienização do prédio todo sozinha, por sua conta e vontade de agradar, um dia resolveu também encher duas vezes ao dia aquelas garrafas de café e até de chá, às vezes. As alaranjadas e as azuladas.
Outra parte da verdade era que D. Emerenciana havia morrido na noite anterior.
O resto do que não é mais segredo, e que talvez nunca tenha sido, é o da invisibilidade do que está por trás do continente ou do menor núcleo de objetividade que seja.

Imagem: Google images

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