terça-feira, 24 de maio de 2011

Nietzsche e a tragédia 3


Friedrich Nietzsche
O Nascimento da tragédia
Cia das Letras, 1992

“Tudo o que na parte apolínea da tragédia grega chega à superfície, no diálogo, parece simples, transparente, belo. Nesse sentido, o diálogo é a imagem e o reflexo dos helenos, cuja natureza se revela na dança, porque na dança a força máxima é apenas, traindo-se porém na flexibilidade e na exuberância do movimento.  Assim, a linguagem dos heróis sofoclianos nos surpreende tanto por sua apolínea precisão e clareza, que temos a impressão de mirar o fundo mais íntimo de seu ser , com certo espanto pelo fato de ser tão curto o caminho até o fundo. Se abstrairmos, todavia, do caráter do herói, tal como aparece à superfície e se torna visível – o qual no fundo nada mais é senão uma imagem luminosa lançada sobre uma parede escura, isto é, uma aparência de uma ponta à outra –, se penetrarmos bem mais no mito que se projeta nesses espelhamentos luminescentes, perceberemos então, de repente, um fenômeno que tem uma relação inversa com um conhecido fenômeno óptico.  Quando, numa tentativa enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras:inversamente, as luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara, são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha. Só nesse sentido devemos acreditar que compreendemos corretamente o sério e importante conceito de ‘serenojovialidade grega’; ao passo que, na realidade, em todos os caminhos e sendas do presente, encontramo-nos com o conceito falsamente entendido dessa serenojovialidade, como se fosse um bem-estar não ameaçado .”
“A mais dolorosa figura do palco grego, o desventurado ÉDIPO, foi concebida por Sófocles como a criatura nobre que, apesar de sua sabedoria, está destinada ao erro e à miséria, mas que, no fim,  por seus tremendos sofrimentos, exerce à sua volta um poder mágico abençoado, que continua a atuar mesmo depois de sua morte. A criatura nobre não peca, é o que o profeta profundo nos quer dizer: por sua atuação pode ir abaixo toda e qualquer lei, toda e qualquer ordem natural e até o mundo moral, mas exatamente por essa atuação é traçado um círculo mágico superior de efeitos que fundam um novo mundo sobre as reinas do velho mundo, que foi derrubado. É o que o poeta, na medida em que é ao mesmo tempo um pensador religioso, nos quer dizer: como poeta, ele nos mostra primeiro um nó processual prodigiosamente atado, que o juiz lentamente, laço por laço, desfaz, para a sua própria perdição; a autêntica alegria helênica por tal desatamento dialético é tão grande que, por esse meio, um sopro de serenojovialidade superior se propaga sobre a obra inteira, o qual apara por toda a parte as pontas dos horríveis pressupostos daquele processo. Em Édipo em Colono nos deparamos com essa mesma serenojovialidade, porém elevada a uma transfiguração infinita; em face do velho, atingido pelo excesso de desgraça, que, a tudo quanto lhe advém, é abandonado como puro sofredor – ergue-se a serenojovialidade sobreterrena, que baixa das esferas divinas e nos dá a entender que o herói, em seu comportamento puramente passivo, alcança a suprema atividade, que se estende muito além de sua vida, enquanto que a sua busca e empenho conscientes apenas o conduziram à passividade. (...)”
“À glória da passividade contraponho agora a glória da atividade, que o Prometeu de Ésquilo ilumina. Aquilo que o pensador Ésquilo tinha aqui a nos dizer, aquilo que ele como poeta apenas nos deixou pressentir através de sua imagem alegórica, é o que o jovem Goethe soube nos desvendar nas arrojadas palavras de seu Prometeu:

Aqui sentado, formo homens
À minha imagem,
Uma estirpe que seja igual a mim,
Para sofrer, para chorar,
Para gozar, para alegrar-se
E para não te respeitar,
Como eu!

“O homem, alçando-se ao titânico, conquista por si a sua cultura e obriga os deuses a se aliarem a ele, porque, em sua autônoma sabedoria, ele tem na mão a existência e os limites desta. O mais maravilhoso, porém, nesse poema sobre Prometeu, que por seu pensamento básico constitui o próprio hino da impiedade, é o profundo pendor esquiliano para a justiça: o incomensurável sofrimento do ‘indivíduo’ audaz, de um lado, e, de outro, a indigência divina, sim, o pressentimento de um crepúsculo dos deuses, o poder que compele os dois mundo do sofrimento à reconciliação, à unificação metafísica – tudo isso lembra, com máxima força, o ponto central e a proposição principal da consideração esquiliana do mundo, aquela que vê Moira tronando, como eterna justiça, sobre deuses e homens. (...)

“O pressuposto desse mito prometéico é o valor incalculável que o homem ingênuo atribui ao fogo como verdadeiro Pládio de toda cultura nascente: mas que o homem reine irrestritamente sobre o fogo e que o receba não como uma dádiva do céu, como raio incendiário ou como ardente queimor do Sol, isto é algo que àqueles contemplativos homens primevos parecia um sacrilégio, um roubo perpetrado contra a natureza divina. E assim o primeiro problema filosófico estabelece imediatamente uma penosa e insolúvel entre homem e deus, e coloca como um bloco rochoso à porta de cada cultura. O melhor e o mais excelso do que é dado à humanidade participar, ela o consegue graças a um sacrilégio, e precisa agora aceitar de novo as suas conseqüências, isto é, todo o caudal de sofrimentos e pesares com que os ofendidos Celestes afligem o nobre gênero humano que aspira as Ascenso: é um áspero pensamento que, através da dignidade que confere o sacrilégio, contrasta estranhamente com o mito semítico do pecado original, em que a curiosidade, a ilusão mentirosa, a sedutibilidade, a cobiça, em suma, uma série de afecções particularmente femininas são vistas como a origem do mal. O que a representação ariana distingue é a ideia sublime do pecado ativo como a virtude genuinamente prometéica: com o que é encontrado ao mesmo tempo o substrato ético da tragédia pessimista, como a justificação do mal humano e, na verdade, tanto da culpa humana quanto do sofrimento por ela causado”. F. Nietzsche em O Nascimento da tragédia, p.63-67).

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