terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Dialética da formação

Pela leitura do romance brasileiro é possível saber o que se formou? O que é o que chamamos Brasil? É possível ver traços dessa formação num samba? Vamos a algumas ideias e depois a um exemplo:
a) Os heróis de Senhora, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de O Ateneu, de Macunaíma e de Grande Sertão: Veredas manifestam um traço comum, talvez o mais saliente: são, todos eles, muito cambiantes e alguns deles o são de modo muito espetacular, até mesmo algo desconcertante, são volúveis (Prof. José Antonio Pasta, "Volubilidade e ideia fixa", em Sinal de Menos, Ano 2, nr 4, 2010);
b) Se observarmos um pouco mais nossas personagens infinitamente movediças, vê-se que, ao lado desse traço de mutação incessante, elas são sempre marcadas por um outro traço que, junto ao primeiro, parece paradoxal: elas são todas portadoras de uma ideia fixa, cruel e implacável (Prof. José Antonio Pasta, "Volubilidade e ideia fixa", em Sinal de Menos, Ano 2, nr 4, 2010);
c) Aí a novidade: adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente objetiva, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor (Prof. Roberto Schwarz, "As ideias fora do lugar", em Ao Vencedor as Batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1992.

Antonico
(Ismael Silva)

Ô Antonico, vou lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade

Ele está mesmo dançando na corda bamba
Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim

Até muamba já fizeram pro rapaz
Porque no samba ninguém faz o que ele faz
Mas hei de vê-lo muito bem, se Deus quiser
E agradeço pelo que você fizer

Pois bem. Letra e samba de primeira grandeza. E que mais temos? Três personagens e uma espécie de "bilhete" entre eles: a) quem escreve, cujo nome é o único não revelado; b) aquele a quem se destina o bilhete, o Antonico, que dá nome ao samba e c) o Nestor (por quem se pede ajuda). Alguns dados: Nestor está na "corda bamba" mas esta parece ser sua condição "natural", pois na escola "é aquele que toca cuíca, toca surdo e tamborim", ou seja, toca o que tiver que tocar. Faz o que tiver que fazer. Há uma hierarquia clara entre os personagens e não há dúvida sobre Nestor constituir o chão. Entre os correspondentes, esta hierarquia está invertida: quem pede, na verdade, manda: a) "só depende da sua vontade", o que equivale a uma primeira ameaça (algo mais ou menos como "se você não fizer terá sido porque não quis fazer e então responderá por isso") e b) "faça por ele como se fosse por mim", que significa que negar o "favor" implicará em responder diretamente a quem fez o "pedido". As coisas devem ser resolvidas entre Antonico e Nestor, por ordem do inominado poder. Quem está na corda bamba agora é, de fato, Antonico, que deve providenciar a "viração" para o Nestor, se quiser manter sua boa relação com o "sem nome" mandador. Isso está longe de ser um "pedido" e muito mais perto da "cordialidade" brasileira, como a demonstrou Sérgio B. de Holanda. O "trabalho feito", expresso na forma "muamba" e "se Deus quiser" compõem um quadro mínimo de crenças e atenuações. A delicadeza do pedido de favor traz uma ordem velada, esconde a relação de autoridade, que, inclusive, dispensa os nomes dos poderosos. Enfim, num inocente e bom samba... Com cuíca em fuga... Eis o Brasil, ao menos em parte.

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