domingo, 19 de fevereiro de 2012

Minas Gerais I

MINAS É A MONTANHA, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região – que se escala. Atrás de muralhas, através de desfiladeiros, –  passa um, passa dois, passa quatro, passa três... – por caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóboda, Suíça brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heróica Província, Formosa Província. O quanto que envaidece e tranqüiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que jeito dizê-la? MINAS: patriazinha. Minas – a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas – a gente não sabe. (...) Saberei que é muito Brasil, um ponto de dentro, Brasil conteúdo, a raiz do assunto. Soubesse-a mais.

Sendo, se diz, que minha terra representa o elevado reservatório, a caixa d´água, o coração branco, difluente, multivertente, que desprente e deixa, para tantas direções, formadas em caudais, as enormes vias – o São Francisco, o Paranaíba e o Grande que fazem o Paraná, e ainda, – e que, desde a meninice de seus olhos-d´água, da discrição de brejos e minadouros, e desses monteses riachinhos com subterfúgios, Minas é a doadora plácida. Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas.

A que via geral se divulga e mais se refere, é a Minas antiga, colonial, (...) a Mãe do Ouro, (...) com o peso de um legado severo, de lástimas avaliadas, grandes sinos, agonias, procissões, oratórios, pelourinhos, ladeiras, jacarandás, chafarizes, realengos, irmandades, opas, letras e latim, retórica satírica, musas entrevistas, estagnadas ausências, música de flautas, poesia do reesvaziado – donde de tudo surge um hábito de irrealidade, hálito do passado, do mais longe, quase um espírito de ruínas, de paradas aventuras e problemas de conduta, um intimativo nostalgir-se, a melancolia que coerce, que vem de níveis profundos. (...) Minas geratriz (...) por prolongado tempo se ligou diretamente à Metrópole de além-mar, como que através de especial tubuladura, fluindo apartada do Brasil restante. (...) Seu gosto pelo dinheiro em abstrato. Sua desconfiança e cautela. (...) Seu fio de barba. Sua arte de firmeza. (...)

Mas esse mineiro se estendeu de lá. (...) É a Mata, (...) É o Sul, (...) É o Triângulo, (...) É o Oeste, (...) É o Norte (...) É o Centro, (...) É o Noroeste (...).

Se são tantas Minas, porém, e contudo uma, será o que a determina, então, apenas uma atmosfera, sendo o mineiro o homem em estado minasgerais? Nós, os indígenas, nem sempre o percebemos. Acostumaram-nos, entretanto, a um vivo rol de atributos, de qualidades mais ou menos específicas, sejam as de: acanhado, afável, amante da liberdade, idem da ordem, anti-romântico, benevolente, bondoso, comedido, canhestro, cumpridor, cordato, desconfiado, disciplinado, discreto, escrupuloso, econômicoengraçado, equilibrado,  fiel, fleumático, grato, hospitaleiro, harmonioso, honrado, inteligente, irônico, justo, leal, lento, morigerado, meditativo, modesto, moroso, obstinado, oportunidade (dotado do senso da), otário, prudente, paciente, plástico, pachorrento, probo, precavido, pão-duro, perseverante, perspicaz, quieto, recatado, respeitador, rotineiro, roceiro, secretivo, simplório, sisudo, sensato, sem nenhuma pressa, sagaz, sonso, sóbrio, trabalhador, tribal, taciturno, tímido, utilitário, virtuoso.

Sendo assim, o mineiro há. Essa raça ou variedade, que, faz já bem tempo, acharam que existia. Se o confirmo, é sem quebra de pejo, pois de mim, sei, compareço, ante quase tudo, como espécime negativo.

Reconheço, porém, a aura da montanha, e os patamares da montanha, de onde o mineiro enxerga. Porque, antes de mais, o mineiro é muito espectador. O mineiro é velhíssimo, é um ser reflexivo, com segundos propósitos e enrolada natureza. É uma gente imaginosa, pois que muito resistente à monotonia. E boa – porque considera este mundo como uma faisqueira, onde todos têm lugar para garimpar. Mas nunca é inocente. O mineiro traz mais individualidade que personalidade. Acha que o importante é ser, e não parecer (...) Sente que a vida é feita de encoberto e imprevisto, por isso aceita o paradoxo; é um idealista prático. (...) Bem alimentado, secularmente, não entra caninamente em disputas. Melhor mesmo – não disputa. Atencioso, sua filosofia é a da cordialidade universal, sincera; mas, em termos. (...) Sempre freqüentado pelo enigma, retalha o enigma em pedacinhos, como quando pica seu fumo de rolo, e faz contabilidade da metafísica: gente muito apta ao reino-do-céu. Não acredita que coisa alguma se resolva por um gesto ou um ato, mas aprendeu que as coisas voltam, que a vida dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar. Principalmente, isto: o mineiro não usurpa. Até sem saber o que faz, o mineiro está sempre pegando com Deus.

Aí está Minas: a mineiridade.

(Fragmento)

JOÃO GUIMARÃES ROSA, Ave, Palavra, a partir de artigo publicado originalmente na Revista Manchete, em 24 de agosto de 1957.

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