terça-feira, 8 de maio de 2012

O começo, no meio (depois)



"(...) Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de quem tinham recebido aquilo. Ultimo, que me veio com ela, quase por engano de acaso, era um homem que, por medo da doença do toque, ia levando seu gado de volta dos gerais para a caatinga, logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo; e aí já estivesse morando mais longe, magoal, no São Josezinho da Serra – no indo para o Riacho-dasAlmas e vindo do Morro dos Ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca. De lá para lá, os oito anos se baldavam. Nem estavam. Senhor subentende o que isso é? A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda. De certo, agora não gostasse mais de mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. Depois o senhor verá por quê, me devolvendo minha razão."

RIOBALDO, em Grande sertão: veredas, pouco antes de começar a mostrar sua estória, depois de 100 páginas contando-a. O “fato” a que se refere, o “O primeiro”, é a travessia do Rio São Francisco com Diadorim. Será o começo mesmo, pois todo o resto são dobras, redobras e desdobramentos e novas dobras.

2 comentários:

  1. Não conheço o escritor mas gostei do texto e da fotografia.
    Gilson, obrigada pelas suas palavras na minha janela. São sempre de uma sensibilidade que me toca.
    Abraço!:)

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    1. Ana, já disse: vá à loja, compre o livro e o leia. Aí está: um Brasil que eu queria que as pessoas conhecessem. A fotografia é minha, às margens do Rio São Francisco, um pouco abaixo de São Romão. Minha arte e meu equipamento não ajudam, mas o lugar é muito bonito.
      Abraço.
      Gilson.

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