sábado, 9 de junho de 2012

Orações


Ramon Menéndez Pidal (El Romancero, 124), estudando os romances de assuntos bíblicos conservados oralmente na África Setentrional, Tânger, Tatuán, Larache, Arzila, Alcázar, transcreve trecho de informação do Sr. Benoliel preciosa no assunto, revelando a existência de cantos que não deviam ser interrompidos, reminiscências positivas de antiguíssimas fórmulas rogatórias no mundo judaico. Escreve o Sr. Benoliel: – Los romances de origen bíblico son tan populares como lós otos, y por uma curiosa superstición, cuando se principian a cantar es obrigatório acabarlos; las judias antiguas no bromean com estas cosas, y tiene gracia el tono y aire solemne que asumen cuando cantan  estos romances.

Reaparece esse elemento nos Velórios pernambucanos, no canto das chamadas Excelências, vivas de São Paulo ao Ceará. A origem provirá da região portuguesa do Entre-Douro-e-Minho e Beiras onde têm a mesma denominação e uso. As Excelências são cantos de intenção religiosa entoados diante do morto. Quarto, Sentinela, Guarda, Guardamente. Getúlio César (Crendices do Nordeste, 142) registra: – Uma particularidade interessante: – Retirando-se o cadáver para o enterro no momento em que estão cantando uma Excelênça, as cantadeiras acompanham o cortejo até terminá-lo, porque, dizem, quando se principia a cantar uma Excelença Nossa Senhora se ajoelha para só se levantar quando terminam, e não sendo terminada ela ficará de joelho e o espírito, devido a esse desrespeito, não ganharia a salvação.

A solução de continuidade na súplica é quase um sacrilégio na imaginação popular. Assim como a cerimônia religiosa não pode interromper-se sem perder sua majestade litúrgica e sua validade intencional, da mesma forma a prece deverá seguir inteira e serena, do princípio ao fim, para que alcance o deferimento almejado. A oração quebrada não tem efeito.

A lição milenar ensina o preceito da continuidade do rito. Nenhuma cerimônia de iniciação podia suspender-se sem repetição desde o início. Nada, dedicado aos deuses, permite-se ser consertado, corrigido, substituído em fração. Tudo novo, puro, virgem, na legitimidade oblacional. Não se emenda o metal votivo. Todo cerimonial participa dessa exigência específica em serviço divino.

Duas oração tão queridas em sua veneranda antiguidade, o Credo e a Salve-Rainha, jamais podem ser recitadas fragmentadamente. Recomeçadas quando houver engano, é obrigação. Em Portugal, Beira, a ‘Oração do Anjo Custódio’ não começa sem ir ao final, sob peã de inutilidade. Idem, Rosário de Santa Rita.

Há exceção. Ficam ambas detidas em determinado vocábulo para efeito de consulta ou defesa mágica. Nos mostrai, na Salve-Rainha; jaz morto, sepultado, no Credo.

Fora dessa licença, pecado grave na teologia popular a divisão condenada.

Para alguns teólogos a simples repetição, quando de início errado, não é aconselhada. J.-K. Huysmans ouviu do prior beneditino a proibição: – Je vous défends absolument, à l`avenir, de jamais recommencer une priére; elle est mal dite, tant pis, passez, ne la répétez pás (Em Route, VIII).

O modelo tradicional no Brasil da oração ininterrupta é o Rosário Abreviado ou Rosário da Conceição. É rezado em voz alta, tanto, tanto mais rápido melhor. Não pode ser lido e sim decorado. Enganando-se na recitação, volta-se ao princípio e conta-se uma negativa sagrada. Deve-se insistir três vezes e a maioria das decisões anuncia a sentença intercessora.

É recurso de desespero, apelo de angústia, uma quase violência à Mãe de Deus.

Reza-se como a um rosário, três terços. No Padre-Nosso diz-se: – Ó Virgem da Conceição, Senhora Concebida sem pecado, Mãe de Deus, Rainha da Vida, Senhora dai-me a mão que minh`alma caída está; meu corpo estremecido sem a vossa consolação; vós aflita e ofendida fostes, Virgem ao pé da Cruz e aflita e ofendida chamo por vós, Mãe de Jesus, ó Virgem da Conceição, vós não fostes aquela que dissestes pela vossa sagrada boca, que quem por vós chamasse cento e cinquenta vezes por dia havia de ser válida? Pois é chegada a ocasião em toda tribulação. Valei-me ó Virgem da Conceição.

Nas Ave-Marias, repete-se: – Mãe de Deus!

O preceito é dizer-se o Rosário Abreviado unicamente uma vez num dia. Abster-se da reincidência por ser uma oração demasiado forte.

Sendo oração de culto oral não pertence à classe das ocultas, guardadas em saquinhos ao pescoço.

Quando o Rosário da Conceição é para as pessoas de fé, as forças do Credo figuram no arsenal da feitiçaria vulgar e das devoções confusas. Também deve ser dito encarreado, sem falha e gsguejo.

Salvo em saio e salvo eu entro. Salvo o senhor São João Barista, lá no Rio Jordão. Na Barca de Noé entrei, e com a chave do Sacrário eu me tranquei. Com os Doze Apóstolos e Jesus me encomendo. Com a força do Credo que eu me benzo. Amém Jesus!

”.

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO, em Superstição no Brasil, p. 430-432).




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