sábado, 16 de junho de 2012

A profundidade II


“A explicação que Bergson propõe para o fenômeno da hipermnésia repousa por completo na ideia de que ele é determinado, não por uma adição, um crescimento, ou o aparecimento de algum elemento novo e positivo, mas ao contrário, pela diminuição, até mesmo pelo desaparecimento ou a ausência do que está habitualmente presente e ativo no espírito. É essa deficiência e essa ausência, esse acontecimento totalmente negativo, que faz jorrar no espírito o que há de mais positivo: a lembrança total, ou seja, a apreensão do eu por ele mesmo.

“Para compreender este paradoxo essencialmente bergsoniano, é preciso lembrar qual é, para Bergson, a atitude habitual do espírito. Essa atitude, Bergson não cansou de repetir: é a atenção à vida. Uma consciência prática, sempre orientada para o futuro, dedica-se a concentrar os seus esforços naquilo que transforma sem cessar o presente em futuro. Do passado, apenas apreende e aceita o que pode ajudá-la a esclarecer o que é, a preparar o que será. Ela é como uma ponta móvel que coincide com o presente e mergulha com ele rumo ao futuro. Estar atento à vida é ser este ponto e esta ponta, o máximo de concentração, mas também o mínimo de espaço, resserrement (contração) extrema do ser no ‘pequeno círculo traçado ao redor da ação presente’.

“Estar atento à vida, portanto, é estar atento ao presente, ao futuro, à ação, a tudo o que delineia à sua frente no campo prospectivo, extraordinariamente contraído, do olhar; ao mesmo tempo, ainda que Bergson não se expresse nesses termos, é também estar desatento à sua própria vida – se por sua vida entende-se o imenso campo retrospectivo onde se conservam as lembranças, que Baudelaire denominava de profundidade da existência”.

Georges Poulet, em O espaço proustiano, Imago Ed., 1992, p. 127-8.


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